Friday, January 12, 2007

Freud e S�-Carneiro

Sunday, January 07, 2007

Literatura engajada

Saturday, January 06, 2007

Freud e Sá-Carneiro

FREUD E SÁ-CARNEIRO: QUALQUER ANALOGIA PODE NÃO SER MERA COINCIDÊNCIA. Rosângela Manhas Mantolvani – Tânia Celestino de Macedo – Letras - Departamento de Literatura - FCL – Faculdade de Ciências e Letras – Câmpus de Assis. 11/2002

RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de realizar uma leitura do texto A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro, com especial abordagem das personagens Marta e Ricardo e da questão do homoerotismo, a partir de alguns pressupostos da Psicologia freudiana. Para analisar a questão proposta, utilizamos como suporte as investigações de Freud sobre os processos que ocorrem no Inconsciente e sobre as projeções que o artista utiliza na construção de sua obra. Buscamos, ainda, estabelecer uma relação entre a teoria de alguns trabalhos freudianos relacionados à construção artística, e selecionados por Speyer e a temática que se apresenta em diversos momentos da trama. Enfim, nosso trabalho procura demonstrar que as personagens Marta e Ricardo representam a porção feminina e masculina de um único ser, construído sob a ótica psicanalítica: um ser clivado cuja performance é tanto feminina quanto masculina. É assim que as focaliza o narrador, espécie de psicanalista escondido sob máscaras.

PALAVRAS-CHAVE: Simbologia; Representação; Inconsciente; Personagens; Projeção; Personalidade.

Produzida em 1913, no momento em que a Psicanálise freudiana procurava delimitar seu espaço e, ao mesmo tempo expandir-se na Europa, A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro, estabelece uma analogia com alguns princípios básicos da Psicanálise, preconizados por Freud. O primeiro princípio diz respeito à constituição do Ego, até então considerado uma entidade homogênea e, a partir do evento da Psicanálise, percebido como individualidade clivada. O segundo princípio diz respeito às relações que se apresentam entre as faces provenientes deste clivo que se apresenta no Ego psicanalítico e, inserem-se na obra, tomando a forma de personagens.
A narrativa de Sá-Carneiro trata da confissão de um homem, Lúcio, que se encontra preso em um local semelhante a um manicômio judiciário, e afirma não ter assassinado a mulher do amigo, Ricardo. A novela apresenta um aparente triângulo amoroso: Lúcio, Ricardo e Marta. Os dois primeiros são amigos. Com o passar do tempo, tornam-se íntimos. Lúcio expõe em forma de confissão, ao leitor, os momentos que passa ao lado de Ricardo. O narrador constrói esses momentos utilizando enunciados dispostos como quadros que, associados, formam uma seqüência coerente, porém fragmentada, na diegese. Ricardo confessa a Lúcio aspectos de sua subjetividade. Lúcio ouve suas confissões e procura dissimuladamente analisá-las. Em certo momento, porém, Ricardo apresenta-se casado com Marta. Esta surge repentinamente na narrativa. Lúcio estranha, pois Ricardo jamais fizera qualquer referência à existência de uma namorada ou noiva. Estranhas relações se estabelecem entre as personagens. Lúcio apaixona-se por Marta. Esta apresenta características que se assemelham às de Ricardo de Loureiro. Lúcio e Marta passam a ter um caso. Ricardo nada comenta a respeito. Marta, porém, inicia um outro caso com Sérgio, amigo de Ricardo e alvo da antipatia de Lúcio, que se percebe atordoado pelo ciúme, pelas obsessões e visões que o perseguem. Subjugado pelo descontrole emocional, discute com Ricardo. Este afirma que Marta pertence apenas a si mesmo. Como narrador autodiegético, Lúcio afirma que Ricardo atirou em Marta. Porém, é Ricardo quem morre. Marta desaparece, da mesma forma como surgiu. Lúcio trata o fato como um mistério. O enigma, cabe ao leitor decifrar.
A divisão do Ego é passível de ser observada na construção da personagem Ricardo. Deste, em algum momento, emerge o outro. Este outro é representado por sua fração feminina: Marta. Esta representa um desejo, uma parte de seu Id, seus sonhos amorosos, suas ocultas tendências homoeróticas.
Na construção dessa novela, Sá-Carneiro organiza estruturas de sentido, de tal forma que obriga seu leitor a assumir o papel de decifrador, tanto no que tange aos argumentos do narrador e do enredo, quanto à própria trama. Para organizar tais estruturas, utiliza metáforas dubidativas, como se pode observar na construção:
E lançava-me agora sobre o seu corpo nu, como quem se arremessasse a um abismo encapelado de sombras, tilintante de fogo e gumes de punhais – ou como quem bebesse um veneno sutil de maldição eterna, por uma taça de ouro, heráldica, ancestral...(Sá-carneiro, 1973, p.55).
Esta, entre outras, remetem o leitor a diferentes interpretações.
O que evidentemente se expõe está relacionado à duplicação dos eus, tanto do narrador, quanto da personagem Ricardo.
Segundo Edgard Pereira, o narrador explícito (Lúcio) subentende o autor implícito (Sá-Carneiro), numa clara insinuação, já no título, da idéia de duplo. (Pereira, 1994, p.119). Ou seja, o autor implícito Sá-Carneiro confessa seu segredo dissimuladamente, através do narrador explícito, enquanto este ouve as confissões de Ricardo e se confessa ao leitor. A idéia de duplicidade percorrerá toda a narrativa.
A questão da sexualidade que, segundo Freud, funciona como força-motriz e tende a direcionar os rumos do indivíduo nas demais atividades, surge como elemento analógico dessa confissão.
Lúcio confessa sob máscaras, como prefere Edgard Pereira, seu desejo por Ricardo, seu amor pelo mesmo sexo: a sucessão de máscaras atende à urgência de mascarar o homoerotismo, alvo de milenar interdição cultural. (id.ibid., p. 121).
Em muitos tópicos narrativos parece possível estabelecer uma analogia entre a narrativa e a Interpretação dos Sonhos de Freud. A estrutura da novela é construída na forma de quadros, entre os quais o tempo é inconstante. A Psicanálise também funciona como referencial na explicação de muitos fatos narrativos e na constituição da personalidade de Ricardo Loureiro. Este, ao confessar a Lúcio, utiliza construções como: eu me limito a contar sem ordem (...) os detalhes mais característicos da sua psicologia [de Ricardo] como meros documentos na minha justificação. (Sá-Carneiro, 1973, p.35).
Ricardo revela a Lúcio os segredos retidos em seu Inconsciente, os seus desejos, as características de sua psiquê. Nesse momento, Lúcio assume o papel do psicanalista que busca compreender e analisar os problemas de Ricardo. Através dessas revelações, Lúcio percebe indícios de homoerotismo: - Ah! Como eu me trocaria pela linda mulher que ali vai (...) (id. Ibid. p. 39). Ou então, confissões mais dissimuladas como: (...) eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo. ( id. Ibid, p. 40).
De acordo com os pressupostos freudianos, na confissão o pecador relata aquilo que sabe; na análise, o neurótico deve contar mais. (Freud, 1987,p.65). Ricardo não confessa, apenas, mas apresenta detalhes sobre sua psiquê de forma a sugerir uma interpretação.
A obra de Sá-Carneiro apresenta mitos relacionados à sexualidade, como o de Édipo, revelado por Ricardo (op.cit., p. 41), enquanto a americana na festa fantástica intitulada A Orgia do Fogo lembra-lhes o de Safo ( id, ibid., p. 24).
Freud esclarece que, no sonho não ocorre apenas uma regressão à infância do indivíduo, mas à própria infância da espécie: (...) é nesse ponto que o sonho se encontra com o mito, ambos sendo expressões dissimuladas do desejo. (Garcia-Roza, 1987, p.83).
Para assegurar na estrutura formal do texto a relação dúbia entre as personagens e os ímpetos ocultos de Ricardo, o narrador buscou organizar a narrativa de forma a confundir o sonho e a realidade ficcional. Cenas, diálogos, assim como o enredo, apresentam-se na forma de sonhos. Como exemplo, é possível observar que na festa acima citada há um clima de erotismo e apelos sensoriais que se mesclam ao ambiente de mistério, no qual luzes, corpos, aromas, o fogo e a água são os elementos-símbolos do onírico. A aparente perda da coerência dos enunciados em alguns momentos parece estar subjacente às questões das projeções das personagens e suas ambigüidades.
Nessa festa, em dado momento, a luz (relacionada a Lúcio, ou à visão de Lúcio) é orientada para o mesmo ponto quimérico do espaço (...) A luz total era uma projeção da própria luz. Tão fantasticamente sonho que se de súbito nos arrancassem os olhos nem por isso nós deixaríamos de ver (id. Ibid., p. 24-25). O que vem comprovar nossa hipótese é a certeza de que nos sonhos não há necessidade de olhos carnais, apenas de olhos mentais, os olhos do Inconsciente.
Outras confirmações de que alguns quadros são seqüências imagéticas projetadas à forma de sonhos apresentam-se nos trechos: Ao término da festa o ar fresco da noite (...) fez-nos despertar (...) não tivemos ânimo para dizer palavra. Na tarde seguinte, ao acordar de um sonho de onze horas (...) (id. Ibid., p. 29). Lúcio não acorda de um sono, mas de um sonho. Sonho de onze horas...
É no Inconsciente que Freud localiza o impulso à formação dos sonhos. O desejo inconsciente liga-se a pensamentos oníricos pertencentes ao Pcs/ Cs (Pré-consciente/ Consciente) e procura uma forma de acesso à consciência, graças à diminuição da censura durante o sono. Enquanto na vigília o processo de excitação percorre normalmente o sentido progressivo, nos sonhos e nas alucinações a excitação (...) caminha no sentido da extremidade sensória, até atingir o sistema Pcpt (Perceptivo), produzindo um reinvestimento de imagens mnêmicas .(Garcia-Roza, 1987, p. 81).
São os pensamentos oníricos latentes que, ao atingirem o sistema Perceptivo transformam-se em imagens que ficam na memória e são manifestadas pelo conteúdo latente. (id.ibid.p.64).
Ainda sobre a influência da psicologia freudiana nessa obra, é possível observar o que diz Ricardo: Garanto-lhe, meu amigo (...) todas as idéias que lhe surjam nas minhas obras (...) traduzem (...) pensamentos que na realidade me ocorrem sobre quaisquer detalhes da minha psicologia. (Sá-Carneiro, 1973, p.33). Ou seja, Ricardo Loureiro parece associar os detalhes relativos à sua psicologia às idéias que Lúcio pudesse perceber em sua obra. O livro que Ricardo escreve, traduz, segundo a personagem, emoções que na realidade senti; pensamentos que na realidade me ocorrem. (id.ibid, p. 33).
Ricardo relata, na novela, seus medos de infância a Lúcio, de tal forma que este se comporta como se fosse seu analista:
Quando era pequeno (e ainda hoje) apavoram-me as ogivas das catedrais, a abóbadas, as sombras de altas colunas, os obeliscos, as grandes escadarias de mármore (...) toda a minha vida psicológica tem sido até agora a projeção dos meus pensamentos infantis – ampliados, modificados; mas sempre no mesmo sentido, na mesma ordem: apenas em outros planos (id.ibid.,p.34).
Parece sugerir que os transferiu para o plano da arte. É assim que compreendemos estes outros planos.
Para Freud, partindo do que se sabe sobre fantasias, este afirma que:
(...) uma forte vivência atual desperta, no poeta, a recordação de uma vivência anterior, ocorrida - na maioria dos casos – na infância; dessa vivência antiga nasce então o desejo que consegue ser satisfeito mediante a criação da obra poética; a própria obra deixa transparecer elementos tanto do motivo recente como da reminiscência antiga. [da infância]. (Speyer, 1963, p.39)
A interpretação da narrativa de Mário de Sá-Carneiro torna-se, para o leitor, um jogo simbólico, assim como a Interpretação de Sonhos, pois se encontra submetida pela relação articulada entre a simbologia utilizada para estruturar a narrativa e a leitura atribuída ao simbólico. Como nos sonhos, nessa narrativa, tudo parece ser possível, tudo aparenta ser provável. Sá-Carneiro trabalha com o fragmentário, com o descontínuo, com a quebra de linearidade. Antonio Candido, nos confirma que:
(...) o conhecimento dos seres (de ficção) é fragmentário. Esta impressão se acentua quando investigamos os (...) fragmentos do ser, que nos são dados por uma conversa, um ato, uma seqüência de atos, uma afirmação, uma unidade, uma informação (...) (Candido, 1963, p. 45).
Projeções de um único ser fictício, Ricardo e Marta funcionam como a representação da face masculina e feminina de uma personagem clivada. Projeção ou não da mente, sana, ou não, do narrador, Marta e Ricardo são representantes das possíveis alternativas armazenadas no substrato instintivo da psiquê de um indivíduo qualquer. Ao plasmar o material de sua fantasia, o autor implícito Sá-Carneiro constrói uma seqüência de metáforas associadas a fogo e luz.
Para mascarar o homoerotismo, surge Marta. O que parece ocorrer é que ela emerge do Inconsciente, a partir da permissão de Ricardo. Marta emerge após as confissões de Ricardo a Lúcio. A face masculina, até então revelada, em dado momento, permite que a sua fração feminina ocupe espaço. Lúcio é aquele que pode perceber a existência tanto de uma, quanto de outra face. Por isso, a Lúcio é possível observar que o beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual, tivera a mesma cor (...) do de Marta. (id. ibid. p. 58). Mesma cor, metáfora que pode significar mesmos movimentos, mesmo traço, mesmas características, porém, pode ser metonímia de boca pintada com batom. Os beijos tinham a mesma cor porque teriam surgido da mesma boca.
Também por serem frações de uma única entidade, Lúcio pôde ver a figura de Marta dissipar-se, esbater-se, som a som, lentamente, até que desapareceu por completo (...) (id. ibid. p. 47). Marta desaparece também no final, da mesma forma como surge. Eis o enigma! Ela não desaparece, mas se oculta. A figura de Marta é algo tão impalpável que, durante as conversas, de Ricardo ou Lúcio, ela não interfere ou participa do assunto, mas mistura-se, como se fosse uma substância capaz de agregar-se a outra. Marta misturava-se por vezes nas nossas discussões. (id. Ibid. p. 44). Marta está sempre entre eles, pois o Ego e o Id de um indivíduo são parcelas inseparáveis. Ocupam, inclusive, o mesmo espaço. O narrador transforma parte do Id de Ricardo na figura de Marta. Pura simbologia. Também no final da narrativa, Marta desaparece: evolara-se no silêncio, como uma chama... (id. ibid., p.76). É no jogo de figuras e metáforas, na descontinuidade, na fragmentação, através da quebra da linearidade, que o narrador faz com que o livro se assemelhe a uma seqüência de sonhos intercalados por momentos de realidade ficcional.
À primeira vista, alguns enunciados parecem inviabilizar esta relação entre a Psicanálise freudiana e a construção genial de Mário de Sá-Carneiro, se atentarmos para o trecho: aquele corpo esplêndido, triunfal [de Marta] dava-se a três homens (...) Três? Quem sabe se uma multidão? (id. Ibid. p. 62). Estas construções, no entanto, têm como objetivo relativizar ainda mais a abstração da figura de Marta e projetar, através da figura feminina, o ciúme que Lúcio sentia em relação a Ricardo.
Ricardo vai com Lúcio até a casa de Sérgio. Marta, nessa cena, surge de repente; (...) Ao pararmos em face do prédio verde, de súbito eu vira Marta avançar distraída até bater à porta (...) (id. ibid. p.66). Novamente, o narrador apresenta Marta como uma figura abstrata, que surge do nada, e assim desaparece, sem dar satisfações.
Candido, na classificação que faz sobre a personagem do romance, explica que em alguns casos, a construção das personagens atende ao seguinte critério:
(...) obedecem a uma certa concepção de homem, a um intuito simbólico, a um impulso indefinível, ou quaisquer outros estímulos de base, que o autor corporifica, de maneira a supormos uma espécie de arquétipo que, embora nutrido da experiência de vida e da observação, é mais interior do que exterior. (Candido et al., 1963, p. 60)
Marta encontra-se inclusa na narrativa como um ser abstrato. Abstração que existe na profundeza do Ser, no Inconsciente, no plano do sonho, do mito.
O interesse de Sá-Carneiro por representar a estrutura do sonho em suas narrativas está presente em sua carta de 21 de janeiro de 1913 (às dez horas da noite) a Fernando Pessoa, na qual escreve:
(...) Quando sonhamos escapam-nos pormenores; os acontecimentos que se desenrolam no sonho, por vezes não têm ligação, sucedem-se invertidos, não estão certos, em suma. (...) surgem-nos como uma soma de parcelas de espécie diferente. Pois o que é preciso é que esta narrativa dê ao leitor a mesma sensação. (Sá-Carneiro, 1978. p.59).
A obsessão a que Lúcio tanto se refere parece funcionar como uma espécie de analogia à questão que Freud coloca em suas Preleções de Introdução à Psicanálise sobre a personalidade do artista-criador:
O artista (...) vive sob a pressão de instintos superfortes (...) porque sabemos quantos (...) dentre os artistas sofrem de inibição parcial, neuroticamente determinada, da própria eficiência (...); sua constituição contém forte capacidade de sublimação, e certa frouxidão de recalques que decidem o conflito. [O artista] (...) para enquadrar-se na realidade, encontra o seguinte caminho: possui a capacidade enigmática de plasmar determinado material até convertê-lo em imagem fiel de sua fantasia(...), sabe dotar essa representação da sua fantasia inconsciente (...) (Speyer,1963, p. 35).
Tanto Lúcio quanto Ricardo são artistas. Lúcio sofre de neuroses, tem obsessões e alucinações, enquanto o segundo apresenta problemas de dupla personalidade.
Momentos antes do assassinato, Ricardo de Loureiro revela a Lúcio como surgiu Marta: (...) eu queria vibrar esse teu afeto – isto é: retribuir-to e me era impossível! Só (...) se te possuísse... Ah! Mas como possuir uma criatura do nosso sexo?... (...) Uma noite (...) finalmente (...) Achei-A...sim! (...) criei-A... Ela é só minha – entendes? (Sá-Carneiro, 1973, p. 74).
A título de ilustração, as neuroses e pressões do artista, especificadas por Freud, estabelecem uma relação com as causas das mortes brutais das personagens da obra A confissão de Lúcio. Quanto às fantasias do homoerotismo, parece evidente que o autor implícito plasma o material a partir do substrato da sua psiquê até convertê-lo em imagem fiel de sua fantasia. Realiza sua fantasia de forma secreta, dissimulada sob as metáforas, o fantástico, o excesso de simbologia e figuras de construção tão enigmáticas e disfarçadas quanto o homoerotismo no contexto de produção do romance (início do século XX), projetando sombras em sua obra.
Freud nos sugere que a linguagem, longe de ser o lugar transparente da verdade, é o lugar do ocultamento. (Garcia-Roza, 1987. p. 66)
Lúcio sugere que Ricardo matou Marta. A arma, no entanto, estava aos seus pés. Ricardo é quem cai morto. Lúcio mata o objeto de seu desejo: Ricardo Loureiro, claro. A morte de Marta representa a destruição de sua fantasia.
Sobre a natureza ilimitada das personagens, Antonio Candido escreve:
(...) quando se teve noção mais clara do mistério dos seres, (...), renunciou-se, em psicologia literária, a uma geografia precisa dos caracteres; e vários escritores tentaram conferir às suas personagens uma natureza aberta, sem limites. Mas (...) essa natureza é uma estrutura limitada, não pela omissão caótica dum sem número de elementos, mas pela escolha de alguns elementos, organizados segundo certa lógica de composição, que cria a ilusão do ilimitado. (Candido, 1963, p.48-49).
Lúcio se confessa inocente. Entre o que Lúcio diz e o que não diz há o abismo do desconhecido: o mesmo abismo que há entre o conhecimento do indivíduo em relação ao outro ou a si mesmo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANDIDO, Antonio et alli.. A personagem do romance in A personagem de ficção. São Paulo,:Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1963.
FREUD, Sigmund. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise: sonhos. Direção e revisão: Jaime Salomão, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o Inconsciente. 3a ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.
PEREIRA, Edgard. A confissão de Lúcio: o narrador no espelho. in SEMANA DE ESTUDOS SÁ-CARNEIRO – 80 anos - Dispersão e A confissão de Lúcio. Belo Horizonte: Centro de Estudos Literários/ UFMG, 1994. p. 119-23.
SÁ-CARNEIRO, Mário. A confissão de Lúcio. Lisboa: Ática, 1969.
__________________. Cartas a Fernando Pessoa. in Obras completas de Mário de Sá-Carneiro. v. I. Lisboa: Edições Ática, 1978
SIMÔES JR, José Geraldo. Martin Claret (coord.). O pensamento vivo de Freud. São Paulo: Martin Claret Editores Ltda., 1987.
SPEYER, W.S. Jonas. Freud, o desconhecido. Obras de ficção e poetas vistos por Sigmund Freud. Assis: F.F.C.L. - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, 1963. p. 7 - 76.
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Tânia Celestino de Macedo Rosângela M. Mantolvani
Orientador Aluno-autor